TENDÊNCIAS - O virtual, seu controle, nossas liberdades
26/05/2007
Nossa transparência não aumentou muito nos últimos anos. Tanto que, nos índices internacionais de corrupção, pioramos muito. Seria diferente se diminuíssemos -- à força -- a assimetria de informação no país?
Silvio Meira
Noite caminhando depressa pra madrugada e ninguém na mesa sabe mais quem deu o tal do "pontapé inicial". Depois de considerandos etílicos sobre o estado da nação, que de certo não cheira nada bem, espocou a pergunta: “o que a informática pode fazer para diminuir esta bagunça”? O boêmio e suas dez doses a mais não estavam pensando só em eleições, campanhas e caixas, mas em malas, cuecas, mimos, lanchas, pensões e de todos os muitos por cento perdidos e não achados em contratos públicos... De repente a mesa inteira acha que sim, que pode isso, aquilo, que tais coisas poderiam ser feitas “pelo computador”, etc. e tal.
Mas será que informática pode mesmo fazer alguma coisa? Talvez não. Tecnologia não resolve tudo e, certas vezes, não resolve nada. Ou pior, como sabe qualquer usuário, complica. É preciso mudar métodos, processos, costumes, culturas. E há questões de fundo que precisam ser resolvidas, talvez, antes: será que o país está corrupto por falta de controles apropriados ou... não há controles (muito menos os apropriados) porque o país é corrupto? Na última opção, o que fazer, a não ser começar de novo? Na primeira, temos sido competentes a pescar piabas que, sem dentes ou similares, vivem a mostrar recibos de um tiradentes amigo... ao tempo em que deixamos passar os tubarões da grande corrupção. Afinal, os tubarões estão aí desde o tempo dos dinossauros e continuam cheios de dentes. E não precisam de recibos, pelo visto, de ninguém.
Óbvio que um recibo falso tem o mesmo status moral de um monte de dinheiro roubado do governo (ou de quem for), por vias quaisquer, para fazer seja lá o que for, de comprar deputados a pagar campanhas. Para tratar um, temos que dar conta do outro. De todos os outros. E a solução pode ser a virtualização de um virtual. De um dos virtuais mais “significativos” de todos.
O dinheiro é a virtualização do poder de compra, representado na prática pelo papel que pode ser transportado e, conseqüentemente, filmado, fotografado e ouvido a caminho dos bolsos dos ocupantes poder. Ou dos laranjas do poder. Ou -- não se pode esquecer -- sendo entregue a agentes da lei, como “cumprimento” de pena por desvios de todo tipo e porte, de excesso de velocidade a homicídio qualificado. Alguém lá da mesa, que não tem poder nenhum, notou que nunca ninguém esteve lá na sua repartição para lhe doar algum. Nem mesmo um “mimo”.
Mas dinheiro é informação. Pura simples. Olhando “só” para o $.gov, os reais que entram e saem do .gov, por que não virtualizá-los de uma vez por todas? Era só pegar o $.gov.br e torná-lo completamente virtual, informatizado, em suma, transparente, em sua viagem pela economia, até cair no bolso de pessoas identificadas e certificadas. Assim, a trilha -- e eventuais descaminhos -- dos recursos públicos estaria exposta. Aberta. Para todos. Inclusive para as máquinas de controle da corrupção dentro e fora do governo.
Nenhum controle, neste caso, pode ser total se o universo de controle é parcial. Quem “ganhou” um contrato público poderia pagar “alguém” com $.com.br, dinheiro de contratos privados e a trilha esfriaria... Mas só se quem executasse contratos públicos não houvesse que relatar, em tempo real, quanto paga e para quem. E, principalmente, o porquê da transação. Para virtualizar, de vez, o dinheiro, começaríamos pelo dinheiro público e, na prática, quebraríamos o sigilo das transações financeiras de todas as instituições pelas quais ele passasse.
A primeira e talvez única regra seria simples: transacionas com o governo? Muito bem: as contas do governo são (teriam que ser) públicas. As tuas, fornecedor, têm que ser também. Isso seria uma revolução danada. Mas será que seria defensável? Dinheiro é algo que se espalha muito rapidamente pela sociedade, dado que todo mundo precisa dele. E como o governo já seqüestra mais de 40% do PIB para uso (e estrago) próprio, muito provavelmente em todo bolso, por aí, há notas que vieram do $.gov.br, passando por só um ou dois intermediários.
A conclusão, na mesa do bar, é que teríamos que virtualizar todo o dinheiro, para todos. Isso faz sentido? Outro filósofo, com um pouco mais de álcool no sangue, acha que sim, e bem alto, pois “algo precisa ser feito”. Mas um cético, quieto (com suas doses) até então, remete ao direito à privacidade (também nas comunicações), garantido na constituição. Segundo ele (que estava certo) pelo inciso 12 do artigo quinto da Carta Magna, se dinheiro é “só” informação, que pode ser transferida entre pontos para remunerar produtos e serviços, esta informação é privativa dos cidadãos que a criam e dela fazem uso.
Ou seja: tanto para dinheiro real, em notas e moedinhas, ou virtual, representado por informação sobre nosso poder de compra, vale -- como não poderia deixar de ser -- a constituição. Mas eis que há um projeto do senador Eduardo Azeredo tramitando no Senado (e que está para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça) que inventa uma “defesa digital” para quem se “sinta ameaçado” por agentes informacionais, dando aos primeiros o direito de interferir nos fluxos de comunicação dos segundos como medida de “prevenção” contra possíveis “crimes digitais”. O senador e seus auxiliares certamente não estiveram reunidos com a força tarefa lá da minha mesa de bar. Houvessem participado da discussão, concluiriam que não se pode conceder, sob hipótese alguma, o direito de “defesa prévia”, e pela via do ataque, contra algo tão pervasivo, na sociedade moderna, como fluxos de informação.
Quer um exemplo? Pense num pregão eletrônico, uma das formas de compras governamentais menos sujeitas a questionamentos que há. Faz-se propostas para fornecer lotes, e todos os agentes estão sujeitos a alguma assimetria de informação: não conhecem os limites dos outros nem, teoricamente, o valor arbitrado, pelo comprador, para um lote. Imagine que um vendedor, beneficiado pela “lei” Azeredo, resolve que outro agente do processo lhe é hostil e, em “legítima” defesa, acaba obtendo dados outrora protegidos do mesmo, em função de tê-lo “invadido” para “se proteger”. Descobre, por exemplo, o fluxo de ofertas do outro e, de posse de tal informação, modifica as suas e ganha a encomenda.
O outro agente, claro, não era hostil. Mas o atacante, questionado a posteriori, dirá que tinha todas as evidências (inclusive as plantadas por ele mesmo?...) para demostrar que era e, de tal forma, entendeu sustentável seu direito de agir. Daí até que alguém prove que Jesus não é Genésio, haverá falências e talvez violências e a “lei” Azeredo, além de não ter servido para nada, terá complicado, e muito, todo o processo. E isso porque era uma comprazinha governamental. Agora imagine bancos guerreando uns contra os outros. Ou empresas. E, claro, pessoas físicas.
Pior ainda é imaginar que uma proposta de lei que pode ter tamanho impacto social já tenha sido aprovada na Comissão de Educação do Senado. Alguma coisa está errada: como é que algo que quase claramente viola um artigo da Constituição não começa sendo discutido na Comissão de Constituição e Justiça? Coisas do Brasil.
O exemplo usado aqui, de informação como dinheiro, é apenas um dos muitos que veremos nesta sociedade da informação que ainda está começando. O senador deveria, com sua equipe, pensar neste e em outros possíveis exemplos e, humildemente, retirar o projeto de circulação. Reconhecer erros, ainda mais a partir do clamor da sociedade, não é uma fraqueza e sim uma virtude muito louvável dos verdadeiros homens públicos. No lugar da “defesa digital”, bem que o senador poderia propor um aumento radical de transparência das compras, contas e homens públicos de todos os poderes. Públicos, as instituições e pessoas já são. Que tal, em benefício de uma maior simetria de informação, passarmos a saber de tudo sobre um de seus particulares fluxos de informação, o de dinheiro?...
Nossa transparência não aumentou muito nos últimos anos. Tanto que, nos índices internacionais de corrupção, pioramos muito. Seria diferente se diminuíssemos -- à força -- a assimetria de informação no país?
Silvio Meira
Noite caminhando depressa pra madrugada e ninguém na mesa sabe mais quem deu o tal do "pontapé inicial". Depois de considerandos etílicos sobre o estado da nação, que de certo não cheira nada bem, espocou a pergunta: “o que a informática pode fazer para diminuir esta bagunça”? O boêmio e suas dez doses a mais não estavam pensando só em eleições, campanhas e caixas, mas em malas, cuecas, mimos, lanchas, pensões e de todos os muitos por cento perdidos e não achados em contratos públicos... De repente a mesa inteira acha que sim, que pode isso, aquilo, que tais coisas poderiam ser feitas “pelo computador”, etc. e tal.
Mas será que informática pode mesmo fazer alguma coisa? Talvez não. Tecnologia não resolve tudo e, certas vezes, não resolve nada. Ou pior, como sabe qualquer usuário, complica. É preciso mudar métodos, processos, costumes, culturas. E há questões de fundo que precisam ser resolvidas, talvez, antes: será que o país está corrupto por falta de controles apropriados ou... não há controles (muito menos os apropriados) porque o país é corrupto? Na última opção, o que fazer, a não ser começar de novo? Na primeira, temos sido competentes a pescar piabas que, sem dentes ou similares, vivem a mostrar recibos de um tiradentes amigo... ao tempo em que deixamos passar os tubarões da grande corrupção. Afinal, os tubarões estão aí desde o tempo dos dinossauros e continuam cheios de dentes. E não precisam de recibos, pelo visto, de ninguém.
Óbvio que um recibo falso tem o mesmo status moral de um monte de dinheiro roubado do governo (ou de quem for), por vias quaisquer, para fazer seja lá o que for, de comprar deputados a pagar campanhas. Para tratar um, temos que dar conta do outro. De todos os outros. E a solução pode ser a virtualização de um virtual. De um dos virtuais mais “significativos” de todos.
O dinheiro é a virtualização do poder de compra, representado na prática pelo papel que pode ser transportado e, conseqüentemente, filmado, fotografado e ouvido a caminho dos bolsos dos ocupantes poder. Ou dos laranjas do poder. Ou -- não se pode esquecer -- sendo entregue a agentes da lei, como “cumprimento” de pena por desvios de todo tipo e porte, de excesso de velocidade a homicídio qualificado. Alguém lá da mesa, que não tem poder nenhum, notou que nunca ninguém esteve lá na sua repartição para lhe doar algum. Nem mesmo um “mimo”.
Mas dinheiro é informação. Pura simples. Olhando “só” para o $.gov, os reais que entram e saem do .gov, por que não virtualizá-los de uma vez por todas? Era só pegar o $.gov.br e torná-lo completamente virtual, informatizado, em suma, transparente, em sua viagem pela economia, até cair no bolso de pessoas identificadas e certificadas. Assim, a trilha -- e eventuais descaminhos -- dos recursos públicos estaria exposta. Aberta. Para todos. Inclusive para as máquinas de controle da corrupção dentro e fora do governo.
Nenhum controle, neste caso, pode ser total se o universo de controle é parcial. Quem “ganhou” um contrato público poderia pagar “alguém” com $.com.br, dinheiro de contratos privados e a trilha esfriaria... Mas só se quem executasse contratos públicos não houvesse que relatar, em tempo real, quanto paga e para quem. E, principalmente, o porquê da transação. Para virtualizar, de vez, o dinheiro, começaríamos pelo dinheiro público e, na prática, quebraríamos o sigilo das transações financeiras de todas as instituições pelas quais ele passasse.
A primeira e talvez única regra seria simples: transacionas com o governo? Muito bem: as contas do governo são (teriam que ser) públicas. As tuas, fornecedor, têm que ser também. Isso seria uma revolução danada. Mas será que seria defensável? Dinheiro é algo que se espalha muito rapidamente pela sociedade, dado que todo mundo precisa dele. E como o governo já seqüestra mais de 40% do PIB para uso (e estrago) próprio, muito provavelmente em todo bolso, por aí, há notas que vieram do $.gov.br, passando por só um ou dois intermediários.
A conclusão, na mesa do bar, é que teríamos que virtualizar todo o dinheiro, para todos. Isso faz sentido? Outro filósofo, com um pouco mais de álcool no sangue, acha que sim, e bem alto, pois “algo precisa ser feito”. Mas um cético, quieto (com suas doses) até então, remete ao direito à privacidade (também nas comunicações), garantido na constituição. Segundo ele (que estava certo) pelo inciso 12 do artigo quinto da Carta Magna, se dinheiro é “só” informação, que pode ser transferida entre pontos para remunerar produtos e serviços, esta informação é privativa dos cidadãos que a criam e dela fazem uso.
Ou seja: tanto para dinheiro real, em notas e moedinhas, ou virtual, representado por informação sobre nosso poder de compra, vale -- como não poderia deixar de ser -- a constituição. Mas eis que há um projeto do senador Eduardo Azeredo tramitando no Senado (e que está para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça) que inventa uma “defesa digital” para quem se “sinta ameaçado” por agentes informacionais, dando aos primeiros o direito de interferir nos fluxos de comunicação dos segundos como medida de “prevenção” contra possíveis “crimes digitais”. O senador e seus auxiliares certamente não estiveram reunidos com a força tarefa lá da minha mesa de bar. Houvessem participado da discussão, concluiriam que não se pode conceder, sob hipótese alguma, o direito de “defesa prévia”, e pela via do ataque, contra algo tão pervasivo, na sociedade moderna, como fluxos de informação.
Quer um exemplo? Pense num pregão eletrônico, uma das formas de compras governamentais menos sujeitas a questionamentos que há. Faz-se propostas para fornecer lotes, e todos os agentes estão sujeitos a alguma assimetria de informação: não conhecem os limites dos outros nem, teoricamente, o valor arbitrado, pelo comprador, para um lote. Imagine que um vendedor, beneficiado pela “lei” Azeredo, resolve que outro agente do processo lhe é hostil e, em “legítima” defesa, acaba obtendo dados outrora protegidos do mesmo, em função de tê-lo “invadido” para “se proteger”. Descobre, por exemplo, o fluxo de ofertas do outro e, de posse de tal informação, modifica as suas e ganha a encomenda.
O outro agente, claro, não era hostil. Mas o atacante, questionado a posteriori, dirá que tinha todas as evidências (inclusive as plantadas por ele mesmo?...) para demostrar que era e, de tal forma, entendeu sustentável seu direito de agir. Daí até que alguém prove que Jesus não é Genésio, haverá falências e talvez violências e a “lei” Azeredo, além de não ter servido para nada, terá complicado, e muito, todo o processo. E isso porque era uma comprazinha governamental. Agora imagine bancos guerreando uns contra os outros. Ou empresas. E, claro, pessoas físicas.
Pior ainda é imaginar que uma proposta de lei que pode ter tamanho impacto social já tenha sido aprovada na Comissão de Educação do Senado. Alguma coisa está errada: como é que algo que quase claramente viola um artigo da Constituição não começa sendo discutido na Comissão de Constituição e Justiça? Coisas do Brasil.
O exemplo usado aqui, de informação como dinheiro, é apenas um dos muitos que veremos nesta sociedade da informação que ainda está começando. O senador deveria, com sua equipe, pensar neste e em outros possíveis exemplos e, humildemente, retirar o projeto de circulação. Reconhecer erros, ainda mais a partir do clamor da sociedade, não é uma fraqueza e sim uma virtude muito louvável dos verdadeiros homens públicos. No lugar da “defesa digital”, bem que o senador poderia propor um aumento radical de transparência das compras, contas e homens públicos de todos os poderes. Públicos, as instituições e pessoas já são. Que tal, em benefício de uma maior simetria de informação, passarmos a saber de tudo sobre um de seus particulares fluxos de informação, o de dinheiro?...
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